O caminho que vinha adiante, diferente do que pensei, estava rodeado de grama e flores silvestres. A presença daquele homem certamente trouxe bonança a essa zona que, antes habitada pela sombra da morte, agora exalava a mais pura essência da vida. Carreguei o corpo de meu irmão em cima da Srª Relâmpago Bravo, o qual estava em um estado de sono profundo. Passaram-se três dias, meu irmão ainda não havia acordado e não havia nenhum sinal de risco ao nosso redor. Já estávamos à beira da entrada da próxima camada, a qual chamavam de Arkhmondú. Era uma região de clima tropical e assim como a camada abaixo era rodeada de florestas densas. Servia de moradia para algumas bestas selvagens, não tão perigosas quando o Demônio das Fendas que encontramos. Não possuía nenhuma cidade ou aldeia e de tempo em tempo alguns grupos de elfos montavam acampamentos por ali para ensinar aos jovens a arte da caçada. O ar dentro da passagem ia ficando cada vez mais intenso, respirar ia ficando cada vez mais fácil à medida que subíamos, até que finalmente posso ver a tão esperada luz no fim do túnel:
– Finalmente, Arkhmondú! – comemoro. – Veja, Srª Relâmpago Bravo, aquela ali é a saída!
Comemoro sozinho, e não é por menos. Jamais havia atravessado uma camada em toda a minha vida, principalmente nessas condições. Não havia me dado conta, mas meu irmão despertou de seu sono profundo e bocejava como uma criança:
–
Aaah!! Que cochilo bom...
–
Irmão, você dormiu por três dias, após ter sido quase morto. Não lembra?
–
Ah, eu tenho uma vaga lembrança de meu sonho. Lutei contra um demônio das fendas e o expulsei para o mais longo abismo, para que nunca mais ousasse mexer comigo, com Srª Relâmpago bravo ou com meu irmão Sharpedo. – respondeu Barthô, sem se lembrar de nada do que havia acontecido de fato.
–
Meu irmão, nós realmente encontramos com esse demônio das fendas, mas acabamos sendo salvos por um homem que mais parecia um santo – respondi.
–
Tem certeza, meu irmão? A propósito, onde está a minha espada?
Com calma, expliquei tudo que havia acontecido. Sua mente se embaralhava de dúvidas à medida que eu ia relatando o breve fato ocorrido. E como se não tivesse sido nada demais, continuou sorrindo. Pulou das costas da mula e disse:
–
Sou agora, então, um guerreiro sem espada – e riu.
Meu irmão tem vento em sua cabeça, só pode. Enfim, a camada a qual nos dirigíamos estava logo acima. Passado o susto, o que viesse seria fichinha. Armamos uma barraca temporária, elaboramos algumas armadilhas para capturarmos alguma coisa para comer. Nem só de frutinhas vermelhas vive um tubarão, e eu particularmente já estava ficando louco com aquela dieta vegetariana. Mal poderia esperar para rasgar com meus dentes carne vermelha, de algum coelho, algum veado, ou qualquer outra criatura que não tenha suas células constituídas pelo mesmo material dos vegetais. Isso me fez lembrar também que há muito tempo eu não tomava banho. Minha pobre pele de tubarão estava totalmente ressecada, e eu precisava a todo custo tomar banho e hidratar o corpo por motivos óbvios. Por sorte, paramos perto de um riacho que cortava a camada, e desaguava em um precipício não muito distante dali. A água que descia certamente ia direto para camadas inferiores, muito distantes, atravessando fendas como a que havíamos atravessado para chegarmos até aqui, e ia de encontro a algum grande oceano ou lago. Aposto que aquelas gotas que caiam sobre nós lá na fenda eram provindas de algum lençol freático que fazia parte desse riacho com sua nascente nessa camada. Como uma criança que se depara com uma montanha de doces, saio correndo em disparada e mergulho com alvoroço sobre as águas cristalinas. Aproveito e devoro alguns peixes que tiveram o azar de passar por ali. Não mencionei antes, mas, em contato com a água, meu corpo assume traços mais característicos de um tubarão. Minha barbatana aumenta de tamanho, minha cara se afina de forma leve, quase não dá para perceber; meus dentes aumentam consideravelmente, e minhas pupilas se contraem; meus sentidos ficam mais aguçados, posso sentir o cheiro de qualquer coisa a quilômetros de distância dentro da água, e de algumas a poucos metros fora dela também. E, a propósito, havia um cheiro muito forte fora dela, e era o de meu irmão. Fazia semanas, aposto, que ele não tomava banho. O mesmo se aproximou de forma sorrateira para observar-me no banho.
–
Barthô, venha! Aproveite a água! – proponho.
–
Sinto muito, irmão, mas vou espalhar mais algumas armadilhas pela vegetação. Diferente de ti, eu prefiro o sabor da carne assada, pretendo catar alguns gravetos e providenciar uma fogueira, pois em breve anoitecerá também – respondeu.
–
Conversa, irmão! Um banho não mata ninguém, e disso você está precisando.
Num pulo, saio da água como um torpedo, passando por cima de sua cabeça e me posiciono em suas costas: eu iria derrubá-lo na água. Como eu disse, dentro d’água sou um tubarão, e minhas habilidades aumentam de forma incrível. Enfim, não dava para ficar mais perto dele com aquele cheiro de estrume, não com o meu olfato aguçado de tubarão.
–
Hey, irmão! O que você pretende fazer? – perguntou Barthô, receoso.
–
Se Barthô não vai até o banho, eu trago o banho até Barthô. - e o empurrei contra o rio.
–
Você não deveria ter feito isso, seu tubarão idiota! – gritou enquanto caía desprevenido água abaixo.
Quanto drama para um simples banho. Algumas pessoas realmente não gostam de água, mas meu irmão já era o cúmulo. Em seguida pulo no rio, pois imaginei que ele temia água por não saber nadar. O rio não era tão fundo, mas também não era tão raso. Para qualquer eventualidade, eu, o tubarão, poderia salvá-lo. Mas ao entrar na água, não sinto mais o cheiro de meu irmão. Alguma coisa havia acontecido. O corpo do meu irmão, dentro d’água, começa a brilhar. Era um brilho que jamais havia visto antes, uma mistura de cores que o fez parecer um ser transcendental, como se fosse vindo de outra dimensão. Recuo instintivamente a fim de me proteger de qualquer reação inesperada, e saio da água em segundos, apavorado com a cena. O brilho parou, e das águas sai um corpo, que não era o de meu irmão. Seus cabelos eram longos e negros, sua pele havia perdido os pelos corporais, os seios estavam maiores, quadris mais largos e sim: era uma mulher. E muito bonita, por sinal.
–
Onde devo ter parado? Pelos deuses, que vida de merda! – gritou a mulher misteriosa, saindo da água.
–
Q-quem é você? – pergunto tomando distancia.
–
Oh, céus... Um homem tubarão. Seu nome é Sharpedo? – perguntou a mulher.
–
S-sim, como sabe quem eu sou? Onde está o meu irmão?
–
Ah, entendi. Você é o meu irmão gêmeo. Lembro que já ouvi falar muito de você, prazer, pode me chamar de BarthóX. Onde está a Srª Relâmpago Bravo? Hey, eu cheguei até aqui com uma mula, não cheguei?
Eu não entendia mais nada. O que merda estava acontecendo? Onde estava meu irmão? Seria ela outra irmã gêmea? Seríamos trigêmeos então?
–
Calma, Barthóx. Poderia me explicar, por gentileza, o que está acontecendo aqui? - pergunto em tom de insatisfação.
–
Olheee, irmãozinho... Não ouse falar assim comigo, ou eu arranco essa sua barbatana! Ou arrancaria um por um esses seus dentes? – e começou a pensar por um tempo em formas de tortura.
Então, ao ouvir a voz da mulher misteriosa, a Srª Relâmpago Bravo sai correndo em sua direção, do meio da vegetação, como se estivesse feliz em ouvir sua voz:
–
Nhyeeerr!!!!! Nhyeeeeeeer-hichic! - relinchava feliz da vida.
A mula pulou em cima de Barthóx, que rolou no chão com ela, fazendo carinho em sua barriga.
–
Que saudades de você, sua mula safadinha.
–
Por favor, tudo que peço é que me explique o que está havendo. – supliquei.
Barthóx, a mulher misteriosa e que usava as roupas de meu irmão, vem em minha direção, e pede para que eu me sente ao seu lado.
–
Meu irmão, como viveu longe de todo o resto da família, você realmente não imagina como as coisas funcionam nela. Não o culpo. Afinal, nosso avô, pai de nosso pai, preferiu criar ao menos um dos seus netos longe da loucura do Makay.
–
Continue, por favor. – pedi.
–
Então, Sharpedo, Eu sou Barthóx. Sou uma Dealexo, assim como você. Como você pode perceber você é um tubarão e eu sou uma mulher humana. Nossa família é amaldiçoada. Parte dela é constituída de raças miscigenadas com tubarões, assim como você. E alguns poucos nascem como humanos, que são os mais raros e que mais sofrem os efeitos genéticos da maldição de nosso ancestral: Fasina Dealexo.
–
Pera, Fasina Dealexo? O Atirador macabro do grupo de assassinos do bando Noyero? – interrompo-a. – Você só pode estar brincando.
Reza a lenda que outrora havia um assassino tão mal quanto o próprio Noyero. Ele era odiado por todos por seus atos demoníacos. Dizem que ele matava qualquer coisa que cruzasse seus olhos por puro prazer. Era louco, e tentava trazer sua loucura ao mundo em forma de chamas, morte e destruição. Ah, e ele sofria de uma maldição bizarra: mudava de sexo em contato com a água.
–
Então, meu irmão, digo, irmã, a maldição era verdade? Não, espera, quer dizer que o Dealexo em meu nome é real? Eu sempre imaginei que fosse uma homenagem, assim como tantos outros que carregam o nome de heróis ou vilões do passado por ai.
–
Sim, Sharpedo. Orgulhe-se ou apenas lide com isso. Para alguns de nossa família, isso é um fardo. Para outros, como eu, isso é motivo de orgulho. E, a propósito, como nasci humana, sofro da maldição da troca de sexo em contato com a água. – respondeu Barthóx.
–
Mas em todos os livros e registros que li durante minha vida, jamais achei algo como um filho que Fasina Dealexo poderia ter tido. E olha que eu sou fanático pelas histórias do Makay antigo.
–
Bobinho, muito do que você leu não passam de mentiras que foram lançadas ao longo da história. Acontecimentos ocultados e omitidos por eras, pelos homens que cultuavam os deuses que eram inimigos de nossa família. Enfim, estou morrendo de fome! Vamos espalhar algumas armadilhas por ai. Ou você já espalhou antes da minha chegada?
Minha mente estava muito confusa. Tudo acontecia de maneira muito rápida. A chegada de meu irmão (irmã), a destruição da minha camada, Barduk detonando um demônio das fendas que quase nos matou, e agora uma revelação desse nível! O que é a verdade? A verdade existe de fato? Entrei em depressão profunda só de imaginar que metade das coisas que li poderiam ser mentiras forjadas durante as eras. E se foram invenções de alguns, tiveram seus motivos. O mundo todo, durante anos, foi enganado. Eu precisava me aprofundar nisso, sem dúvidas, mas agora eu estava muito curioso pelas histórias que minha irmã-irmão-humano tinha para contar.
Conversei com ela sobre a chegada de Barthô à nossa biblioteca, sobre a morte do vovô, sobre o incêndio e tudo o que mais havia acontecido até ali. Ficou impressionada com nossa aproximação recente de Barduk, e aparentou ter conhecimento sobre o mesmo. Preferi não contar que a mesma foi salva por ele, enfim. Diferente do comportamento mais imbecil da sua personalidade masculina, Barthóx era muito fria e dominadora. Adorava me dar cortadas e sempre que podia me obrigava a fazer certos favores para ela. A noite chegou silenciosa, quase não percebemos. Fizemos uma fogueira, e assamos carne de algumas bestas menores que foram capturadas pelas armadilhas espalhadas. Estava tudo uma delícia. Barthóx tomou a barraca toda para si, e me obrigou a dormir do lado de fora. Disse que precisava descansar sua beleza feminina, e que o homem da casa deveria fazer vigia a noite toda. Passaram-se algumas horas, e caio no sono.
Acordo com um grito ensurdecedor da minha nova companheira:
–
Sharpedo! Pedi para que vigiasse nossas coisas, mas acabou dormindo. Observe a merda que você fez! Homem só faz bosta, vai se foder.
Olho ao redor e percebo que havíamos sido saqueados.
–
Como assim? Eu teria percebido o cheiro de qualquer ameaça de longe, mesmo dormindo! – rebati.
–
É, mas tu é retardado, e deixou que roubassem tudo. Trate de arrumar a barraca, temos que achar indícios de quem ousou nos sacanear. – e enfiou-se mata adentro com a Srª Relâmpago Bravo.
Indignado com o ocorrido, obedeço-a. Sentia-me culpado, no fundo, pelo ocorrido. Ao terminar de arrumar tudo, aproveito o tempo sem aquele demônio histérico do meu lado para curtir meu habitat natural: a água. Mergulho no rio, e assim que minhas narinas são estimuladas pelo contato com a água, consigo captar um cheiro diferente a alguns metros de distância. Certamente foi o do miserável que nos roubou. Deve ter parado para descansar em alguma margem do rio mais adiante. Sem pensar duas vezes, começo nadar correnteza acima, em busca do suposto ladrão. Eu estava certo, não cheguei a nadar tão longe assim, e já podia avistar duas criaturinhas. Pareciam ser dois tufões. Tufões são uma variação de Yokais menores. Possuem seu corpo constituído por uma pelagem que lembra muito folhas no chão, uma espécie de camuflagem natural. Três dedos em suas mãos e pés, sua cabeça lembra a de uma lagartixa com olhos de gatos. A maioria possui dois chifres pequeninos em suas cabeças, mas alguns podem possuir até três. Não costumam se misturar com outras raças e são conhecidos por suas habilidades de roubo silencioso. Eles falavam no seu próprio idioma, e pareciam discutir. Havia alguns sacos de ouro ao lado deles. Provavelmente haviam saqueado algum lorde e pelo nervosismo com que discutiam pareciam estar sendo perseguidos. Decidi me aproveitar da desatenção dos dois para abocanhá-los (sim, eles eram realmente pequenos) e arrastá-los para o rio. Dentro d'água não teriam como fugir de mim. Aproximei-me da margem e, quando ia dar o bote fatal, uma adaga atinge o chifre de um dos tufões, e faz com que eles entrem em alerta. Um deles pega uma lança longa e lança contra a água. Exatamente, eles haviam me notado. Por sorte, a primeira lança passou de raspão, e eu consegui me livrar de todas as outras. No entanto, eu era uma presa fácil naquele rio de profundidade tão pequena. Começo a recuar temendo por minha vida, até que uma segunda adaga atinge a cabeça de um dos Tufões dessa vez. Assustado, seu parceiro tenta fugir com as sacolas do roubo, mas a adaga enfiada na cabeça do outro explode e espalha estilhaços ao redor, de maneira que acaba dando fim ao outro, e por pouco a mim também.
–
Ah, consegui! Finalmente! – uma voz fala do alto.
Olho para cima, e vejo um pombo descendo. Ele era branco e tinha uma mancha preta em seu olho esquerdo. De repente, uma fumaça o envolve, e ele torna-se um Yokai. Ele caminha em direção aos corpos, apanha o saco de moedas, e senta-se na margem do rio.
–
Tubarão, da próxima vez que tentar abater alguma presa, certifique-se que sua barbatana não está visível – disse o Yokai, em tom de riso.
Ele tinha razão. Eu teria sido morto no primeiro momento, se não fosse por ele. Num pulo, saio da água, e começo a me aproximar dele.
–
Era apenas um teste, só para ver qual seria a sua reação – menti.
–
Ah, então você percebeu mesmo a minha presença? Preciso treinar mais então. Prazer, eu me chamo Tael, e há muito vinha seguindo o rastro desses dois. – pelo visto, ele caiu na minha mentira.
–
Eu me chamo Sharpedo, e estava atrás das coisas que eles haviam me roubado. Esse ouro era seu, Tael? – pergunto.
–
Não. Eu só estava esperando o momento certo para roubá-los. Ha-ha-ha!!!
Tael era um ladrão, e pelo que pude perceber também se tratava de um Metamorfo. Será que ele havia roubado nossas coisas, na verdade, e não os Tufões? Comecei a me preocupar, eu estava diante de um provável psicopata assassino. Tael junta os sacos de dinheiro e coloca-os dentro de uma bolsa menor, que parecia não ter fundo. Provavelmente um dos raros itens mágicos que existem no Makay.
–
Então, Sharpedo, o que você tem aí? – pergunta, enquanto fecha sua bolsinha.
–
Calma, Tael, eu estava atrás do que foi roubado por essas criaturazinhas. – respondi, dando alguns passos para trás, pronto para mergulhar no rio em fuga.
–
Sharpedo, está com medo de mim? Espere... – e foi interrompido por uma pedra que foi lançada em sua direção, tão veloz quanto uma bala.
Era minha irmã, que havia ouvido o barulho das explosões e foi na direção dele. Deve ter observado um pouco a conversa, e ao perceber que eu corria perigo, tentou me proteger. Tael assustou-se com aquilo, transformou-se em pombo e fugiu.
–
Seu idiota, não se afaste de mim! – gritou Barthóx.
–
Desculpe, eu só queria mostrar meu valor a ti, irmã.
–
Família em primeiro lugar. Vamos, antes que você se meta em mais encrenca.
Voltamos para o acampamento, e descobri que não havíamos sido roubados. Barthóx confessou que era sonâmbula. Quando dormia e entrava nesse estado, tornava-se também cleptomaníaca (tinha a ver com a maldição da família). Já imaginava isso, por isso entrou no meio da vegetação após sua explosão de raiva ao acordar. Escondeu tudo em um local não tão distante dali. Organizamos nossas coisas, e continuamos nossa caminhada.
(Barthóx, perdendo suas bolas
ilustração: Felipe Jatobá-Chan)
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